Como medicamentos que salvam vidas são descobertos?
Junte-se à pesquisadora da DNDi e apresentadora da série, Fanny Escudié, para entender como cientistas estão utilizando as tecnologias mais avançadas para melhorar a vida de milhões de pacientes negligenciados em todo o mundo.

Episódio 4
Doença de Chagas: Um método inovador para enfrentar o desafio de longa data dos biomarcadores
''Um grande desafio no campo da pesquisa e desenvolvimento de medicamentos é que, se você não consegue medir o efeito do medicamento que está desenvolvendo, não pode provar que ele funciona. Este é um problema que cientistas em busca de novos tratamentos para a doença de Chagas enfrentam há mais de meio século", afirma Eric Chatelain, Líder do Programa de Descoberta de Medicamentos da DNDi.
Os parasitas que causam a doença de Chagas podem se esconder de forma indetectável no corpo humano por anos, até mesmo décadas, tornando muito difícil avaliar se um medicamento em estudo está realmente eliminando-os. No entanto, a DNDi e seu parceiro InfYnity Biomarkers desenvolveram um método inovador que pode ser a chave para desbloquear pesquisas e encontrar novos tratamentos.
O que é a doença de Chagas?
A doença de Chagas é uma doença negligenciada e potencialmente fatal que afeta de 6 a 7 milhões de pessoas, principalmente na América Latina, e está se espalhando para outras regiões devido a movimentos populacionais. É causada por um parasita chamado Trypanosoma cruzi, transmitido aos humanos pela picada de insetos conhecidos como “barbeiros”. A transmissão também pode ocorrer de mãe para filho e por alimentos e bebidas contaminados.
A doença de Chagas muitas vezes permanece assintomática, mas provoca complicações graves em aproximadamente 30% das pessoas infectadas. Os sintomas incluem danos a órgãos como o trato gastrointestinal e o coração, com lesões cardíacas que podem levar à morte súbita. Como muitas pessoas não sabem que estão infectadas até que seja tarde demais, a doença é, por vezes, chamada de "assassina silenciosa".
Apesar da alta carga da doença, os tratamentos existentes para a doença de Chagas estão longe de ser ideais. Eles foram descobertos há mais de 50 anos e podem causar efeitos colaterais graves. Além disso, precisam ser administrados por um período de dois a três meses, o que dificulta a adesão dos pacientes ao tratamento. Ainda assim, avançar na busca por tratamentos melhores tem sido extremamente desafiador.


Por que é tão difícil encontrar novos medicamentos para a doença de Chagas
"Trypanosoma cruzi é um parasita muito complicado. Ele pode assumir diferentes formas e infectar quase todos os tipos de células humanas. Pode se esconder em diferentes órgãos, como o coração ou o intestino, e também ser encontrado na pele, no cérebro, no estômago e até mesmo em tecidos adiposos, onde pouquíssimos parasitas conseguem chegar", explica Jadel Kratz, Diretor de Descoberta e Parcerias de P&D da DNDi na América Latina.
Apenas uma pequena quantidade de parasitas é encontrada no corpo. Eles estão altamente adaptados ao organismo humano, evitando o sistema imunológico e sobrevivendo nos tecidos por anos. Ocasionalmente, aparecem no sangue, mas as ferramentas atuais não são suficientes para detectar com precisão sua presença. Isso torna difícil determinar se um medicamento é eficaz ou se alcança a cura durante os testes clínicos.
Jadel Kratz, Diretor de Descoberta e Parcerias de P&D da DNDi
Jadel Kratz, Diretor de Descoberta e Parcerias de P&D da DNDi
O problema dos "biomarcadores" na doença de Chagas
Biomarcadores são características do corpo — como temperatura, pressão arterial ou a presença de anticorpos no sangue — que podem ser medidos para avaliar uma condição médica. Eles também podem indicar como o organismo responde a um tratamento, por exemplo, se um medicamento eliminou parasitas ou vírus.
As ferramentas atuais utilizadas para medir os biomarcadores da doença de Chagas e avaliar a eficácia dos tratamentos apresentam grandes limitações, o que impede os pesquisadores de determinar se um tratamento realmente funciona. Um dos métodos mais comuns mede a “sororreversão”. Isso envolve acompanhar o desaparecimento de anticorpos no sangue do paciente, produzidos pelo sistema imunológico em reação ao patógeno em questão (neste caso, o Trypanosoma cruzi).
Quando um tratamento é eficaz, o organismo deixa de produzir anticorpos, tornando a sororreversão uma ferramenta confiável para avaliar a eficácia de um medicamento. No entanto, na doença de Chagas, pode levar anos — ou até décadas — para que se observe uma queda nos anticorpos em adultos, mesmo após a eliminação de todos os parasitas Trypanosoma cruzi do corpo (o que os médicos chamam de “cura parasitológica”).
"Isso significa que não podemos realizar um ensaio clínico usando apenas a sororreversão para medir os resultados do tratamento. Teríamos que acompanhar os pacientes por dez anos ou mais, o que é incompatível com os prazos e os custos do desenvolvimento de medicamentos. Não temos esse tempo quando desenvolvemos um novo medicamento", explica Ivan Scandale, Líder de Descoberta da DNDi.
Ivan Scandale, Líder de Descoberta da DNDi
Ivan Scandale, Líder de Descoberta da DNDi
Outro método frequentemente utilizado envolve medir diretamente a presença do DNA do parasita no sangue por meio da reação em cadeia da polimerase (PCR). No entanto, o Trypanosoma cruzi reside principalmente nos tecidos, com pouquíssimos parasitas circulando na corrente sanguínea. Como resultado, o método de PCR pode não fornecer um retrato preciso da infecção. Por esse motivo, ele não é aceito pelas autoridades regulatórias para o registro de um medicamento para a doença de Chagas.


A inovação MultiCruzi
Para superar o desafio dos biomarcadores, a DNDi e a InfYnity Biomarkers tiveram uma ideia: utilizaram um teste desenvolvido pela InfYnity chamado MultiCruzi, capaz de detectar 15 anticorpos diferentes específicos para o parasita Trypanosoma cruzi no sangue dos pacientes. Após diluir amostras de sangue e visualizar os anticorpos por meio de coloração, é possível analisar um mapa visual detalhado da presença dos anticorpos.
"O segredo por trás desse novo método é a diluição. Isso nos permite detectar quedas muito sutis nos níveis de anticorpos, que não podem ser identificadas com os testes sorológicos existentes, que fornecem apenas um resultado binário de sim ou não. A diluição nos possibilita obter um sinal mais detalhado em comparação com a sorologia convencional; podemos usar essa assinatura de anticorpos para prever a futura sororreversão"
Como os humanos reagem de maneira diferente a um patógeno, alguns desenvolvem mais anticorpos de um tipo específico do que outros. "Se olharmos apenas para um anticorpo, podemos perder o sinal em um determinado paciente", explica Eric Chatelain. Testar 15 anticorpos diferentes ao mesmo tempo aumenta as chances de detecção.
Ao aplicar ferramentas estatísticas avançadas para analisar o mapa visual obtido por meio deste ensaio, os cientistas conseguem detectar reduções graduais na resposta imunológica ao longo do tempo, ajudando-os a prever rapidamente se o tratamento está funcionando — o que significa que os parasitas foram eliminados e o paciente está curado.
Para validar seu modelo, Chatelain e sua equipe utilizaram amostras de sangue de pacientes adultos com Chagas que participaram do ensaio clínico BENDITA, um estudo conduzido pela DNDi e seus parceiros na Colômbia e na Bolívia em 2016 e 2017. As amostras foram coletadas antes do tratamento e 6 e 12 meses após o tratamento. "Esses dados nos permitiram confirmar que nosso modelo de predição funciona", afirma Ivan Scandale.
O método já havia mostrado resultados promissores na previsão da eficácia do tratamento em crianças, para quem a sororreversão é muito mais rápida do que em adultos. Agora, a DNDi e seu parceiro demonstraram que o ensaio multiplex MultiCruzi também funciona para adultos, desde que a diluição seja adicionada ao processo. Apenas um ano após o tratamento, o método permitiu medir uma redução nos anticorpos entre pacientes que receberam o tratamento em comparação com aqueles que não o receberam — uma melhoria significativa em relação aos testes sorológicos convencionais.
As descobertas foram publicadas em novembro de 2024 na Nature Communications.
Eric Chatelain, Head of DNDi’s Drug Discovery Programme
Eric Chatelain, Head of DNDi’s Drug Discovery Programme
O que vem a seguir?
A equipe agora está trabalhando com o Hospital Ricardo Gutiérrez, em Buenos Aires, para aperfeiçoar ainda mais o modelo. O objetivo é obter a aprovação das autoridades regulatórias para que o MultiCruzi seja aceito como um preditor de cura parasitológica em futuros ensaios clínicos. Essa aprovação representaria um marco importante, não apenas nos esforços para encontrar tratamentos melhores para a doença de Chagas, mas também para os profissionais de saúde, que teriam uma nova ferramenta de monitoramento para avaliar se seus pacientes estão realmente curados.
Essa inovação pode, portanto, ser um verdadeiro divisor de águas. Ao fornecer uma ferramenta muito mais rápida e precisa para medir a eficácia dos tratamentos, o método MultiCruzi tem o potencial de transformar a pesquisa sobre Chagas — trazendo esperança para milhões de pessoas afetadas por essa doença devastadora.

Saiba mais sobre biomarcadores e o nosso trabalho em Chagas:
- Nosso trabalho com biomarcadores de Chagas
- Nosso trabalho em doença de Chagas
- Early assessment of antibodies decline in Chagas patients following treatment using a serological multiplex immunoassay - Nature Communications
- Prediction of parasitological cure in children infected with Trypanosoma cruzi using a novel multiplex serological approach: an observational, retrospective cohort study - The Lancet Infectious Diseases
- The unmet medical need for Trypanosoma cruzi-infected patients: Monitoring the disease status - Biochimica et Biophysica Acta (BBA) - Molecular Basis of Disease
- The BENDITA trial
Créditos de Foto: Xavier Vahed-DNDi; Ana Ferreira-DNDi
Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi) é uma organização internacional, sem fins lucrativos, que desenvolve tratamentos seguros, eficazes e acessíveis para os pacientes mais negligenciados.
